A nobreza de Harry e Whitney
Entre os assuntos mais comentados da semana estão a cinebiografia de Whitney Houston, “I wanna dance with somebody” e mega-uga-hit literário (literário?) “Spare”, do príncipe Harry. Dois personagens cujas trajetórias parecem gravadas para sempre no imaginário de gerações atuais e futuras. O que dirão os observadores das artes e do entretenimento sobre eles daqui a cem anos?
Pode ser que nem tenhamos um mundo daqui a cem anos. Nada dura para sempre e, no caso de Whitney Houston, tudo durou muito, muito pouco. É possível que boa parte do público do filme seja da minha geração. Quarentões e cinquentões que acompanharam pelo menos parte da carreira de uma das vozes mais belas da música pop de todos os tempos. Entre os mais jovens, Whitney também é uma referência. Dê um google nos “The Voices” da vida e não será difícil encontrar tentativas de intepretação para várias das canções eternizadas na voz da moça de Newark.
Whitney era encantadoramente correta. Fugia das tretas armadas por jornalistas sensacionalistas que tentavam criar uma rivalidade entre ela e Mariah, Celine, Chaka… ela nunca caía. O porte elegante não era meramente externo. Whitney era uma nobre. Um tipo de realeza que merecia um filme um pouquinho melhor.
Clive Davies, o produtor que a embrulhou para o mundo pop, disse que “I wanna dance with somebody” pretendia mostrar o lado musical de Whitney. E isto transforma o filme num enfadonho playlist de canções icônicas. O medley histórico que ela fez na cerimônia de entrega do American Music Awards de 1994 realmente mereceu ser executado na sua totalidade no longa. No entanto, todas aquelas músicas amontoadas como fio condutor da narrativa resultaram numa mera linha do tempo banal. Melhor ouvir no Spotify.
Falando em banalidades, e a família real, hein? Os detratores têm dito que o livro do ruivo trata de questões familiares e, como tais, devem ser mantidas em caráter íntimo. Não poderia concordar mais, caso a família real britânica fosse uma família. Não é. Trata-se de uma empresa que faz de tudo para justificar e preservar uma inacreditável vida de privilégios bancada pelo pagante de impostos e pelo tesouro construído a partir de séculos de exploração colonial.
É sempre divertido ver os reais chamando de “trabalho” o que fazem. Eles cortam fitas de inauguração, doam para caridades e condecoram personalidades. De vez em quando oferecem minutos de olhos-nos-olhos para alguns súditos que se rendem à magia real de um conto de fadas conservador e racista. Um sistema sustentado pelo mesmo povo que nos deu alguns dos movimentos culturais mais contestadores da história. Vai entender.
Assim como aconteceu com Diana, Harry tem sido vítima de “gaslighting”. Os tabloides ingleses, que agora sabemos por Harry que funcionam em parceria com a famiglia, têm usado trechos do livro para transformar Harry num reclamão bobo. Nem uma linha sobre o racismo vivido por Meghan naquele contexto — um jornalista britânico sugeriu que ela fosse humilhada em praça pública — ou sobre os vazamentos seletivos de informações do palácio para os jornais. Foi o mesmo com a série documental. As vozes negras que deram seus depoimentos não entraram nas críticas, nas sinopses… Nada. Tudo tratado como bobagens de um príncipe manipulado por uma bruxa. O que só reforça a importância de “Spare”.
De um certo ponto de vista, é Harry quem está prestando um inestimável serviço à sociedade ao revelar o que acontece naqueles bastidores. Atrás de tantas riquezas roubadas de tantos povos ao longo da história, há muita coisa podre no reino. E não é o da Dinamarca.