‘Arte de viver’ ensina a ‘lidar com stress’ mas fracassa com a própria crise

Ronald Villardo
3 min readJul 28, 2022

--

Uma das coisas mais perigosas em escolas que misturam tradições milenares com “negócios” é não entender onde uma começa e a outra termina. A Arte de Viver se apresenta como uma escola internacional que ensina técnicas milenares por um determinado valor em dinheiro. Esta é a empresa. Por outro lado, a organização trata o seu CEO como um mestre, rendendo-lhe uma reverência inexistente no mundo corporativo, porém comum nas tradições das escolas religiosas da Índia, onde as tais tradições nasceram. Quais os limites entre uma e outra coisa?

LEIA AQUI: Arte de Viver é acusada de tentar abafar denúncias

Esta semana, ex- integrantes da instituição denunciaram a falta de interesse da Arte de Viver em investigar os casos de assédio sexual denunciados por mais de uma vítima dentro da organização. Os eventos teriam acontecido nas filiais brasileiras e nas de outros países, como Argentina e Portugal. No início do ano, a instituição manteve o assunto no âmbito interno, criando um "Comitê de Ética" formado por instrutores da rede. A ideia era ouvir outras vítimas de assédio e tomar as providências para que o crime não voltasse a acontecer. Aparentemente, não foi isso o que aconteceu. A direção central desejava que a comissão abafasse os casos em vez de investigá-los.

LEIA AQUI: Arte de Viver cancela eventos em São Paulo

LEIA AQUI: "Me pediu para não contar a ninguém", diz vítima.

O contexto deste imbróglio parte de uma grande confusão. É preciso entender que no momento em que Ravi Shankar decidiu sair do seu mundinho indiano para vender seus cursos "ao mundo", ele assumiu uma responsabilidade social que transcende a sua visão particular das coisas. Ele tornou-se CEO de uma empresa. Como tal, deve satisfações à sociedade toda vez que denúncias graves surgirem.

Raquel Ferreira, uma das instrutoras do tal comitê interno da escola, deu uma das mais inteligentes respostas ao caso. Ao relatar os motivos de sua decisão de desligar-se da organização, ela conta ao repórter Lucas Altino, do Globo: “Em um encontro que definiu a reabertura da sede da Barra da Tijuca (fechada durante a pandemia), uma integrante da direção me disse que deveríamos seguir em frente e não deixar que uma pessoa levasse a Arte de Viver para o ralo. Eu disse que o que levaria ou não para o ralo seria a forma que a gente lidasse com isso”.

Com a afirmação, Raquel ofereceu, DE GRAÇA, uma lufada de lucidez à uma direção central que parece cega para a realidade. Lamentavelmente, a então instrutora, que não tinha intenção alguma de abandonar o barco, não foi ouvida. Desta maneira, à ela não foi deixada outra alternativa exceto exonerar a organização de sua vida. Fez bem.

É bom ressaltar que, pelo menos até agora, ninguém acusou o CEO Ravi Shankar de nada. É possível até que estivesse sendo aplaudido neste momento, se em vez de tentar abafar o escândalo, ele tivesse aparecido e reconhecido as acusações, pedido desculpas aos alunos e colaboradores e anunciado um procedimento — de verdade — para evitar novos casos.

Em vez disso, pelos esclarecimentos postados no site, percebe-se que a ADV tem tratado os novos questionamentos e suspeitas como “mentiras de algumas pessoas”. A postura só confirma o que disse a instrutora dissidente.

Mas afinal de contas, o que deverá acontecer com a Arte de Viver?

Nada.

Seguidores vão se comportar como comportam-se os seguidores de toda seita: dirão que "quem está 'lá fora' não entende nada, não sabe como somos especiais. São nossos inimigos”.

O bom e velho nós contra eles, que sempre dá certo. Tais estratégias são bem explicadas no livro “Brainwashing — The science of thought control”, de Kathleen Taylor. E este será assunto para outro post. Até lá.

--

--

No responses yet